quarta-feira, 20 de março de 2019

Greve da fome ou jejum?

Foi com pompa e circunstância que os meios de comunicação social noticiaram que um dirigente sindical, em protesto pelo que o próprio considerou ofensivo da sua classe profissional, ia iniciar uma greve da fome junto à residência oficial do chefe de Estado. Para o efeito, não só convocou as televisões, como também montou uma tenda junto ao palácio de Belém, a recordar a barraca real, em que a família real portuguesa se alojou depois da ruína e incêndio do Paço Real, como consequência do terrível terramoto de 1 de Novembro de 1755.

Era suposto que o dedicado líder sindical permanecesse nessa inóspita morada durante muito tempo, porque o seu protesto se previa longo. Também se supunha que, enquanto as suas reivindicações não fossem atendidas pelo governo, se abstivesse de ingerir quaisquer alimentos ou bebidas. Mas, felizmente, o que se temia poder vir a ser um drama, acabou por ser apenas uma comédia, não só porque o tempo desse forçado jejum foi escasso, ao ponto de não se notar qualquer diferença física no dito grevista, por sinal bem nutrido de carnes, mas também porque a suposta abstinência de quaisquer alimentos sólidos, ou líquidos, veio-se a demonstrar bastante menos drástica: para além da água, o grevista também se alimentou de mel, que é um alimento bastante rico em nutrientes e, por sinal, muito saboroso.

Não estão em apreço as razões, certamente louváveis, que levaram o referido sindicalista a protagonizar um tão singular protesto, nem muito menos amesquinhar o seu nobre gesto que, graças a Deus, foi dado por concluído muito antes de ter perigado a sua saúde pessoal. Ficou, no entanto, o exemplo de quem, para chamar a atenção para uma sua preocupação laboral, recorreu ao jejum e à abstinência.

É comum ouvir-se dizer que o jejum, que é obrigatório na quarta-feira de cinzas e na sexta-feira santa, já não faz sentido, como também há quem dispense a abstinência, obrigatória não apenas nas sextas-feiras quaresmais, mas em todas as sextas-feiras do ano que não coincidam com nenhuma solenidade, segundo as vigentes normas da Conferência Episcopal portuguesa. Não falta quem advogue o suposto anacronismo dessas penitências, dir-se-ia que medievais. Alguns espiritualistas entendem, por sua vez, que a carne de nada aproveita e que o que importa é o espírito e, portanto, é indiferente o que se coma e beba. Alguns biblistas também opinam que a proibição de comidas e bebidas são resquícios das normas disciplinares judaicas, que impunham severas restrições alimentares, entretanto superadas pela nova lei, que já não considera nenhum alimento ou bebida como impuro, porque todos foram criados por Deus para o bem dos homens.

Qualquer sociólogo seria levado a concordar com estas precipitadas conclusões contra o sentido e oportunidade do jejum e da abstinência cristãs, não fosse a própria sociedade civil nos oferecer, em pleno século XXI, exemplos dessas mesmas mortificações. Com efeito, que é uma greve da fome senão um prolongado jejum?! É certo que sem nenhum propósito sobrenatural, mas apenas para proveito de uma reivindicação política, ou laboral, mas sem apreciável diferença em relação às práticas penitenciais que a Igreja recomenda, segundo uma tradição que remonta ao próprio Jesus Cristo, que durante quarenta dias jejuou no deserto. Se um sindicalista do século XXI, por razões de ordem laboral, se propõe fazer uma greve da fome às portas do palácio presidencial, quem se atreve a dizer que o jejum e a abstinência são práticas ultrapassadas e que já ninguém é capaz de entender o seu sentido impetratório e purificador?! 

Aliás, também Gandhi, figura maior do humanismo universal, quando via baldados os seus esforços para alcançar a paz entre todos os cidadãos indianos, por causa do profundo antagonismo entre muçulmanos e hindus, entregava-se a jejuns prolongados, para assim alcançar a tão desejada paz, até ao extremo de ter posto em perigo, várias vezes, a sua vida. Mas, quando as conversações políticas falhavam, este era o último recurso que lhe restava para alcançar a reconciliação, que porventura não se teria logrado se não fosse pelo heróico sacrifício do Mahatma.

Paradoxo contemporâneo: nunca a nossa sociedade foi tão hedonista, nem nunca se mortificou tanto! Os mesmos que protestam contra o jejum e a abstinência, que consideram práticas obsoletas, são os que fazem greves da fome e se recusam a comer carne ou peixe. Enquanto a abstinência cristã é só da carne e às sextas-feiras, os vegetarianos obrigam-se a uma perpétua privação da carne e os ‘vegan’ até do peixe e dos derivados prescindem voluntariamente! Se um cristão optar por não comer carne à sexta-feira – também há outros modos, igualmente válidos, de cumprir este preceito penitencial – não faltará quem o considere um extremista, um perigoso fundamentalista, se não mesmo um fanático. Mas, se alguém se privar sempre da carne e do peixe e não apenas um dia por semana, é geral o respeito por quem pratica uma tão saudável alimentação que, como agora se diz, é muito ‘amiga’ do ambiente!

Sejamos defensores da natureza e solidários com todas as justas causas laborais e sociais mas, sobretudo, sejamos amigos de Deus e dos nossos irmãos, sendo fiéis à Igreja no fiel cumprimento das suas normas penitenciais, sobretudo neste tão salutar tempo quaresmal. Esta é, certamente, a melhor ‘dieta’ para a nossa salvação e para a salvação do mundo!
P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA

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