quarta-feira, 22 de julho de 2020

OXALÁ APRENDÊSSEMOS DE MARIA MADALENA A ARTE DE CORRER


No dia 3 de junho de 2016, por pedido expresso do Papa Francisco, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos decretou que a celebração de Santa Maria Madalena seria elevada no Calendário romano geral de memória obrigatória a festa. Apesar dos cochichos sobre quem era esta mulher e o quanto se gosta de indagar sobre a sua possível profissão, o documento ousa chamá-la algo muito mais interessante: apostola apostolorum. O que é que isto quer dizer? Quais são as implicações desta frase enigmática que apesar de estar em latim nos pode soar a chinês? Que podemos aprender de Santa Maria Madalena sobre o que significa ser apóstolo em geral e membro desta rede mundial de apóstolos da oração em particular?

No princípio era o Verbo [sem corretor automático]

Há uma coisa que me deixa triste. Se escrevermos a palavra apóstola no Microsoft Word, o corretor automático não tarda em sublinhar a palavra como errada. Não inventei este argumento para comprar simpatias. São Gregório Magno, Papa do final do século VI, descreveu Maria Madalena como a primeira testemunha da divina misericórdia (Homiliae in evangelia, 11, 25, 10). Ora, quando uma testemunha ocular do ministério de Cristo e da sua Ressurreição é instruída diretamente por Cristo a anunciar legitimamente a boa nova da ressurreição (cf. Atos 1, 15-26; 1 Coríntios 9, 1-2; 15, 7-8; 2 Coríntios 12, 12; Gálatas 1) então podemos chamar-lhe de apóstolo em pleno direito. Neste sentido, São Tomás de Aquino afirmou com toda a legitimidade que Maria Madalena era a apóstola dos apóstolos (In Ioannem evangelistam expositio, III, 6). Ainda bem que naquele tempo ainda não havia corretor automático…

Recordemos aqui a cena evangélica de que estamos a falar (Jo 20, 1-18). O Senhor Jesus, após a sua morte e sepultura, não se encontrava no túmulo. Ao dar-se conta da ausência do seu corpo no sepulcro estranhamente aberto, Maria Madalena correu a dizer a Pedro e ao discípulo amado que o corpo do Senhor desaparecera. Ambos correm até ao sepulcro. Pedro e o discípulo amado regressam e fica apenas Maria, ao pé do sepulcro, a chorar o seu Senhor. A cena continua. Depois de conversar com uns anjos, Maria é encontrada pelo ressuscitado mas não O reconhece. Volta-se para Ele e, pensando que era o jardineiro, pergunta-lhe onde colocou o corpo daquele que ali estava sepultado. Depois de uns instantes de conversa, o aparente jardineiro chama Maria pelo seu nome. Reconhecendo o timbre ressuscitado de Cristo, Maria volta-se de novo para Ele e deixa-se enviar novamente aos discípulos. Corre e diz-lhe: Vi o Senhor!

Habitualmente, os estudiosos da Sagrada Escritura chamam à atenção para a repetição do termo ‘voltar-se’. Maria volta-se duas vezes para Jesus. Esta repetição parece evocar a de uma conversão progressiva do olhar até se tornar capaz de reconhecer quem era Aquele que lhe dizia: “Mulher, porque choras? (…) Maria! (…) Não me toques, porque ainda não subi para o Pai. Mas vai ter com os meus irmãos e diz-lhes: subo para o meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”. Em paralelo com esta afirmação exegética, sobre a função da repetição da palavra ‘voltar-se’, gostava de chamar à atenção para os dois modos de correr de Maria.

Sobre dois modos de correr

Neste capitulo 20 de São João, Maria é apresentada duas vezes em movimento desde o sepulcro; uma no v. 2 e outra no v. 18. Na primeira afirma-se claramente que ela corre, já na segunda a afirmação não é explícita mas a sua ocorrência é muito plausível. Qual de nós, sendo visitado por alguém que ressuscitou dos mortos e nos envia a ir anunciar este acontecimento, sai de passo lento e ponderado? Visitada de modo tão surpreendente, não pode ser sem alguma velocidade que interpretamos a expressão: “Maria Madalena foi”.

Ora, gostava agora que focássemos a atenção sobre a palavra ‘correr’ usada no versículo 2 e o termo ‘vai’ dito por Jesus no versículo 17 ao enviar Maria à sua nova corrida. Por um lado, a palavra ‘correr’ aparece no original grego (τρέχει) como um verbo no presente do indicativo ativo. Trata-se portanto de um ato que começa e termina no sujeito, toda a atividade depende de Maria e está centrada nela. Maria não sabe onde está o corpo de Jesus, desespera e corre. A ação começa e termina na sua pessoa, nas suas questões e desejos individuais. Por outro lado, o imperativo de Jesus a Maria Madalena – ‘vai’ – aparece no original grego (πορεύου) com uma forma gramatical que nos pode soar muito estranha. Trata-se de um verbo no presente imperativo da voz média. Voz média? Que vem a ser a voz média?

A voz média é um resquício muito antigo das línguas indo-europeias que se conservou no grego clássico – no qual está escrito o Novo Testamento. Trata-se de uma das três vozes (ativa, média e passiva) cujo significado tem uma grande riqueza, de difícil tradução para as nossas línguas modernas. Comecemos por dizer que a voz passiva (ex. ‘um livro foi comprado pelo João’ em vez da forma ativa ‘o João comprou um livro’) é uma formulação muito tardia nas línguas indo-europeias. Mais ainda, de acordo com os estudos linguísticos de Jean Humbert na sua Syntaxe Grecque (1963), sabemos que a voz passiva se desenvolveu com base na voz média, tendo causado o seu progressivo desaparecimento. Portanto, mantém-se a pergunta, em que consiste a voz média? Pode ela ajudar-nos a compreender as palavras de Jesus e a missão de Maria?

O fabuloso destino da voz média e a missão de apóstola de Maria Madalena

Cada voz tem um destino. A voz ativa destina-se a colocar o centro no sujeito, a voz passiva destina-se a dar o centro ao objeto sobre o qual se atua; e a voz média? Para os primeiros gramáticos gregos, a voz média representa uma convergência dos sentidos ativo e passivo, no qual a fala que começa no sujeito entra em relação com outro e a ele retorna. Donde podemos concluir que a voz média destina-se a colocar o enlevo na relação iniciada pelo sujeito com o sujeito ao qual se dirige. Sim, desenha-se como uma relação de sujeitos que, sob a iniciativa de um, estão em colaboração.

Torna-se, portanto, digno de muita atenção olhar com cuidado para este imperativo do Senhor: ‘ide’. Jesus manda mas manda como quem pede. Manda pedindo colaboração, envia uma pessoa livre que não corre por ativismo ou coação. A missão nasce do encontro pessoal que a autoriza, que a torna também coautora do Evangelho. O mandato de Cristo a Maria Madalena não se dá num tipo de relação instrumental – preciso de trabalhadores para a minha causa – mas de amor cooperativo. Há muita mais poesia nesta formulação, há mais frescura evangélica neste modo de ler o envio do Senhor Jesus para a missão.

Eventualmente a separação gramatical ativo-passivo fez-nos gerar uma linguagem espiritual que nos caracterizava a nós como instrumentos nas mãos do Senhor. Nada há de necessariamente errado nesta linguagem, mas pode correr o risco de nos tornar em realidades passivas quando o Senhor deseja convidar-nos à missão mediante o exercício da nossa liberdade e não apenas das nossas capacidades executivas. Neste sentido, o envio apostólico de Maria Madalena pode despontar como um modo de reaprendermos três coisas:

1. Todos os batizados, e não apenas os religiosos ou membros do ministério ordenado, receberam a tradição apostólica em virtude de uma relação pessoal e comunitária com Jesus Cristo no Espírito Santo;

2. Se nos queixamos como Igreja que os cristãos têm pouco espírito missionário não devemos olhar para as causas na falta de ativismo ou na ausência de passividade diante dos movimentos do Espírito, mas para a necessidade de renovarmos o exercício do nosso encontro pessoal com Cristo que deseja encontrar-se com cada pessoa sem violentar a sua liberdade;

3. Se sentimos que na nossa vida há pouco lugar para os outros, para os irmãos, para os pobres e para os excluídos, renovemos o nosso desejo de encontro com Cristo e isso determinará tudo. Oxalá aprendêssemos de Maria Madalena a arte de correr…

Miguel Pedro Melo, sj

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