“A misericórdia, com as suas obras”
Viver a Quaresma de 2016, na diocese, no país e no mundo, tem tanto de local como de universal, ainda que necessariamente conjugado por cada um de nós. E por cada um de nós como discípulo de Cristo, exercitantes que somos do Evangelho vivo.
Na nossa diocese significa caminho sinodal, para nos retomarmos em resposta ao apelo do Papa Francisco, na exortação apostólica Evangelii Gaudium. Há instantemente um sonho a cumprir: o sonho missionário de chegar a todos, até cada periferia de pessoas, grupos, estruturas e circunstâncias que esperam por nós, ainda que o não saibam.
E não tanto por nós, mas sempre pelo Evangelho de Cristo, que nos cumpre viver mais e testemunhar melhor, sempre mais e melhor. Para isto mesmo serve cada Quaresma, para nos “rasgar o coração”, para falarmos como o profeta Joel, pois nada nos basta – a nós e aos outros – senão a largueza do amor divino. Aproveitemos este tempo tão especial de graça – a Quaresma do Ano Santo da Misericórdia -, para que a escuta mais atenta da Palavra de Deus e os atos mais decididos da caridade prática nos levem a fazê-lo, em geral benefício. Somos a resposta de Cristo ao mundo; peçamos a Cristo a graça de a prestarmos.
Consideremos, entretanto, que a cidade dos homens é a base operativa da Cidade de Deus. É também por isso que as obras de misericórdia, tão relembradas pelo Papa Francisco, são igualmente corporais e espirituais, e a realizar no global. Neste ano jubilar, que todo versa o tema da misericórdia, apliquemo-nos com redobrado esforço a cada uma delas, no singular e no conjunto.
Convém lembrá-las, na formulação tradicional e facilmente memorizável, dando a cada uma a concretização que em cada caso precisa de ter. Será mesmo um bom exercício quaresmal aprendê-las de cor até à Páscoa, e não me parece demais começar já aqui: As corporais: 1ª) Dar de comer a quem tem fome. 2ª) Dar de beber a quem tem sede. 3ª) Vestir os nus. 4ª) Dar pousada aos peregrinos. 5ª) Assistir aos enfermos. 6ª) Visitar os presos. 7ª) Enterrar os mortos. As espirituais: 1ª) Dar bom conselho. 2ª) Ensinar os ignorantes. 3ª) Corrigir os que erram. 4ª) Consolar os tristes. 5ª) Perdoar as injúrias. 6ª) Sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo. 7ª) Rogar a Deus por vivos e defuntos.
Estou certo de que, lembrando cada uma, imediatamente nos ocorrem concretizações urgentes ou possíveis. Nas nossas casas, comunidades, escolas, hospitais, prisões, locais de trabalho ou convívio, não faltam ocasiões e apelos.
Saciar fome e sede, ter veste e alojamento, são necessidades básicas de todos e requisitos solidários também, para qualquer “sociedade” que queira realmente sê-lo. São a primeira face da realidade humana, que sempre carece e espera. Face em que nos espelhamos e onde se espelha o próprio Cristo, no rosto de quem nos interpela. O mesmo Cristo que saciava a fome material dos outros, para os saciar depois, doutra fome mais larga e persistente. Mas com esta sequência, necessariamente. Também por isso, as nossas comunidades, em que se manifesta e expande o corpo eclesial do Ressuscitado, não podem, nem querem, ignorar a face inteira da fome, sede, nudez ou desabrigo de qualquer ser humano. Se havemos de recusar o materialismo, igualmente evitaremos qualquer espiritualismo oco, para nos dedicarmos, isso sim, a um serviço concreto e global, como o Evangelho ensina. Do mesmo modo consideremos que assistir aos enfermos e visitar os presos, nos faz tocar diretamente a Cristo, que no horto sofreu agonia e prisão.
Diz um passo evangélico que quem O tocava ficava curado. Toquemo-Lo em que sofre, para alívio alheio e cura própria. Demonstrando assim que ninguém se pode salvaguardar do sofrimento dos outros. Bem pelo contrário, é na relação com quem sofre que nos curamos também a nós.
Aliás, as chamadas “questões fraturantes”, que sucessivamente irrompem, fraturam-nos sobretudo a nós como humanidade, quando se alegam assim chamados “direitos” de alguns para nos desresponsabilizar da resposta solidária que devíamos dar a todos, com mais cuidado e companhia.
Quanto a enterrar os mortos, terá seguimento nas atuais circunstâncias, para além do que requer como serviço organizado. Para quem parte, é dignidade reconhecida e assim mesmo manifesta. Para quem fica, é amizade comprovada, que compartilha o luto e faz companhia.
Dar bom conselho, ensinar os ignorantes e corrigir os que erram, são outras tantas demonstrações de que com eles realmente estamos e para eles igualmente somos, numa pedagogia que não os dispensa nem nos dispensa a nós. Como Jesus, que nunca despedia quem O procurava, antes longamente ensinava, assim temos de estar na grande e mútua escola que este mundo deve ser.
Com verdadeiro interesse pelo bem dos outros, que não os deixe dissolver valores em caprichos, nem vaguear sem rumo. Há muita sabedoria adquirida e comprovada por milénios de humanidade, que tanto devemos guardar pessoal como socioculturalmente. Assim como não há liberdade de escolha, quando nem se conhece o que escolher.
Consolar os tristes ganha hoje particular pertinência, pois nada entristece tanto como o isolamento em que se vive, mesmo que fugazmente entretido. Para as pessoas que somos, a alegria é outro nome da verdadeira convivência, hoje escassa e por vezes nula. Prevenir ou consolar tristezas é não deixar ninguém sem companhia, seja onde for ou quando for, quer para festejar os êxitos quer para ultrapassar os fracassos. Temos tantas razões, possibilidades e meios para nos acompanharmos sempre, que é grande contradição fazê-lo pouco ou nunca.
Perdoar as injúrias, é dar a quem as faz uma oportunidade mais para se refazer melhor. Para um discípulo de Cristo, é ocasião para seguir o seu mestre, que injuriado não respondia com injúrias, assim mesmo demostrando a grandeza que tinha. Foi esta a sua maneira de converter a tantos e nos converter a nós. No presente Jubileu, reparemos especialmente na magnanimidade do Pai do filho pródigo, parábola maior da misericórdia divina.
O mesmo se diga do sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo, não desistindo de ninguém; como Deus não desiste de nós, quando demoramos tanto a recuperar-Lhe a semelhança, apesar da graça que nunca recusa. Lembra-nos São Paulo que «a Cristo, que não conhecera o pecado, identificou-O Deus com o pecado por amor de nós, para que em Cristo nos tornássemos justiça de Deus»: Pensemos muito nisto, para que as fraquezas dos outros nunca sejam pretexto para desistir seja de quem for. Situa-se aqui, precisamente aqui, o desafio do amor cristão. Que também não deixa de rogar a Deus por vivos e defuntos, pois a caridade nunca acabará.
Somos, tantas vezes, uma imensidão de sós... Quem não tem família por perto, vizinhos atentos, visitas nos hospitais, nas prisões, ou lares de idosos… E também nas nossas ruas e espaços, que se transformam frequentemente em locais de duvidosa compensação e perigosos consumos, para jovens e menos jovens sem ambiente doméstico nem melhor enquadramento. A estes e outros desajustamentos pessoais e sociais responderão as obras de misericórdia na respetiva complementaridade, pois tanto alojam os peregrinos de algo ou de si próprios como dão bom conselho e recriam relações. São campos abertos à caridade criativa, com muito por fazer na cidade de nós todos.
Na caminhada sinodal de Lisboa, algumas conclusões dos grupos vão já nesse sentido, valorizando, por exemplo, os nexos familiares, comunitários e intercomunitários, para que ninguém fique isolado nem se isole a si próprio, da infância à velhice. E para formar “familiarmente” as pessoas, quer em ordem ao matrimónio quer para o serviço da Família de Deus, que é a Igreja no seu todo. É este um campo prioritário para a ação diocesana; e ainda mais se definirá por certo, na conclusão programática a que chegaremos em sínodo.
Somos e seremos, ao mesmo tempo, verdadeiros cidadãos do mundo. E não só porque hoje toda a distância se anula como quem prime um botão, mas também porque deparamos aqui com uma crescente diversidade étnica e cultural concentrada em pouco espaço, o nosso espaço comum.
Num lugar central de Lisboa e arredores podem cruzar-se dezenas de pessoas de várias proveniências e tradições, religiosas ou outras. Acolhamos quem chegue agora, em busca de sobrevivência e trabalho, como acolhemos outros há algum tempo já. E no futuro, eles e nós, seremos a sociedade de todos, sobre a base comum de direitos humanos respeitados e, de facto, praticados.
Largo campo, também este, para a prática das obras de misericórdia. Em termos propriamente cristãos, sabemos que o bom futuro é assegurado pelas vidas que se oferecem a Deus, única maneira de se repartirem por todos. Como Cristo depôs a sua nas mãos do Pai, que logo a distribuiu em abundância.
Esta foi a sua Páscoa, que celebraremos inteiramente, quando também connosco for assim. Por isso mesmo, ainda que tudo corporalmente se exteriorize, é espiritualmente que se garante. Aí mesmo, no “segredo” que apenas o Pai vê e recompensa, como o Evangelho ensina. Aí mesmo, quando jejuamos de tudo o mais que não seja Deus, para nos repartirmos em esmola que a todos alcance. Não foi outro o êxodo de Cristo, não será outro o nosso, que lhe herdamos o Espírito.Com todos vós, em conversão à misericórdia divina,
† Manuel, Cardeal-Patriarca
Lisboa, Quarta-Feira de Cinzas, 10 de fevereiro de 2016
(A nossa renúncia quaresmal de 2015, destinada a várias instituições e iniciativas sociocaritativas do Patriarcado, atingiu duzentos e cinquenta mil euros. Ouvido o Conselho Presbiteral, encaminharei a renúncia quaresmal da diocese de Lisboa em 2016 para um Apoio Diocesano às Obras de Misericórdia (ADOM), que nos permita corresponder aos crescentes pedidos de ajuda de entidades que as praticam.)
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