quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Homilia de D. Manuel Clemente na Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus e Dia Mundial da Paz

A partir da paternidade divina, é possível a fraternidade humana
Homilia da Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus e Dia Mundial da Paz

Celebramos o primeiro dia de 2014 como Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus e Dia Mundial da Paz, motivos que intrinsecamente se ligam. Como ouvimos na leitura da Carta aos Gálatas, «quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher e sujeito à Lei, para resgatar os que estavam sujeitos à Lei nos tornar seus filhos adotivos». Ora, sendo filhos do mesmo Deus, somos finalmente irmãos, assim culminando a aspiração universal de toda a humanidade, também uma só por origem e destino.
É nesta fraternidade alcançada que residirá absolutamente a paz. E o Papa Francisco intitula a sua mensagem para este Dia nesse sentido igualmente: «Fraternidade, fundamento e caminho para a paz». Meditemos um pouco nestes tópicos, tão plenos de beleza como importando grandes responsabilidades para todos nós, no ano que hoje começa.

É na verdade grande e multissecular a aspiração pela fraternidade entre os homens. Manifestou-se já em tempos recuados, das primeiras organizações de famílias e clãs aos grandes impérios clássicos. Mas importa dizer que, ainda que tal aspiração conseguisse expressões sublimes nalguma literatura e filosofia, não passava geralmente de grupos para grupos, nem alastrava ao conjunto dos seres humanos. Muito menos quando o topo de cidadãos livres dominava sobre grandes quantidades de escravos desprovidos de direitos.

Neste preciso ponto, o cristianismo trouxe uma novidade radical, logo percebida e anunciada pelos primeiros discípulos de Jesus. É também na carta aos Gálatas que São Paulo escreve, tirando uma conclusão social plena da filiação divina que ganhámos com o Filho de Maria: «É que todos vós sois filhos de Deus em Cristo Jesus, mediante a fé; pois todos os que fostes batizados em Cristo, revestistes-vos de Cristo, mediante a fé. Não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus» (Gl 3, 26-28).

Há ainda outro passo de Paulo, muito eloquente sobre a raiz da fraternidade, cristãmente afirmada. É quando o apóstolo escreve ao seu amigo Filémon, a propósito de Onésimo, escravo deste último, entretanto convertido. Pede a Filémon que o receba «não já como escravo, mas […] como irmão muito querido; isto especialmente para mim, quanto mais para ti, que com ele estás relacionado tanto humanamente como no Senhor» (Flm 16).

Sabemos como demorou a conclusão prática desta novidade cristã, até à abolição legal da escravatura. Mas a semente estava lançada e a germinação começou, fazendo do cristianismo uma fonte principal das declarações modernas dos direitos humanos, como ninguém certamente negará.

Mas é igualmente importante sublinhar com o Papa Francisco que a fonte radical da fraternidade está na comum paternidade divina em relação a nós todos. E que, esquecida esta, tudo o mais decerto enfraquece: «Resulta claramente que as próprias éticas contemporâneas se mostram incapazes de produzir autênticos vínculos de fraternidade, porque uma fraternidade privada da referência a um Pai comum como seu fundamento último não consegue subsistir. Uma verdadeira fraternidade entre os homens supõe e exige uma paternidade transcendente» (Mensagem para a celebração do 47º Dia Mundial da Paz, nº 1).

A clareza do Papa neste ponto é bem reforçada – a contra luz – pela evidente dificuldade em concretizar o terceiro item da trilogia moderna, tantas vezes enunciada: liberdade, igualdade e fraternidade. Se os dois primeiros se podem decretar na lei, embora tardem na prática, o terceiro requer motivações mais profundas e uma garantia maior, que só lhe pode ser dada pela inquestionável origem comum e pessoal de todos os seres humanos. Esta mesma que, pressentida e até afirmada pela generalidade das religiões, teve na vida e na doutrina de Jesus Cristo o seu enunciado mais cabal. Como ao dizer: «… porque um só é o vosso Pai, aquele que está no Céu» (Mt 23, 9).

Já o facto de nascermos em família e assim mesmo crescermos, proporciona a aprendizagem concreta da fraternidade a que aspiramos. Sobretudo quando a familiaridade se alarga entre vários parentes, a mútua atenção que tal requer, o respeito uns pelos outros e a entreajuda necessária, tudo há de ativar a potencialidade fraternal que transportamos. Deus põe-nos realmente nas mãos uns dos outros e o mais necessário é que não deixemos cair ninguém, por descuido ou omissão. Daqui se alarga o exercício da fraternidade à sociedade inteira, que só assim faz jus a esse nome, de mundo de “sócios”, isto é de companheiros e gente realmente irmanada.

Para as famílias e comunidades cristãs, esta pedagogia fraternal é um ponto essencial para o que façam e planeiem fazer. O melhor que as comunidades cristãs – e bem assim outras comunidades crentes, que adoram um único Deus e Criador de todos – podem e devem fazer, neste momento complexo e mesmo trágico da história mundial, é serem escolas de fraternidade e solidariedade entre os seus membros e para com todos, concretizando um desígnio universal de salvação, outro modo de dizer de justiça e de paz entre pessoas, povos e culturas.

A gravidade duma globalização que, trazendo e possibilitando proximidades inéditas, nem sempre quer dizer vizinhança e fraternidade universais, exige-nos um compromisso reforçado, tanto pelos problemas a resolver como pelos meios de que hoje dispomos para tal.

Comecemos onde estamos, como “fermento evangélico na massa do mundo”. Pouco a pouco, exemplo a exemplo, o bom contágio alargará. Se fizermos o que Deus quer que se faça, para bem de todos as suas criaturas, ficaremos surpreendidos com o alcance dos pequenos gestos, como quando poucos pães conseguiram alimentar uma multidão inteira e ainda sobrou muito (cf. Jo 6, 4 ss). A partir da paternidade divina é possível realizar a fraternidade humana.

E sobretudo, não nos esqueçamos de viver cristãmente, ou seja, como filhos de Deus e irmãos de todos. São também do Papa Francisco estas incisivas palavras: «A crise atual, com pesadas consequências na vida das pessoas, pode ser também uma ocasião propícia para recuperar as virtudes da prudência, temperança, justiça e fortaleza. Elas podem ajudar-nos a superar os momentos difíceis e a redescobrir os laços fraternos que nos unem uns aos outros, com a confiança profunda de que o homem tem necessidade e é capaz de algo mais do que a maximização do próprio lucro individual. As referidas virtudes são necessárias sobretudo para construir e manter uma sociedade à medida da dignidade humana» (Mensagem, nº 6).

Concluía o Evangelho de há pouco dizendo que «Maria conservava todos estes acontecimentos [que envolviam o nascimento de Jesus], meditando-os em seu coração». - Ajude-nos a Mãe de Deus a guardá-los e meditá-los, para que deem, também por nós, os frutos de justiça e de paz por que o nosso mundo tanto anseia!  

+ Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa
Igreja paroquial de Santo António de Moscavide, 1 de janeiro de 2014

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